Pesquisar este blog

domingo, 28 de dezembro de 2014

Eternizar o instante.




Eternizar o instante.
Ainda adolescente, assisti a um filme produzido na antiga União Soviética. O enredo contava a história de um rapaz destacado para o front na II Guerra Mundial.

 Depois de dois anos longe, o jovem finalmente ganhou um salvo conduto de quinze dias para voltar para casa. Gastaria o tempo com a mãe. A viagem de regresso, contudo, foi cheia de percalços. 

O trem quebrou. Aconteceu um ataque de tropas inimigas. Nevou. Os incidentes se multiplicaram. Depois de inúmeros atrasos, ao desembarcar na estação do vilarejo, o soldado só dispunha de alguns poucos minutos antes de pegar o trem que lhe devolveria às tropas. Se falhasse, enfrentaria processo como desertor.

O inominável se deu com a mãe: ela também se atrasou. Os raros minutos do rapaz foram desperdiçados a andar, desesperado, de um lado para outro. O tempo se esgotou. Ele se viu obrigado a subir de volta ao mesmo vagão. Mas eis que, no exato momento em que o trem começou a se afastar, a mãe chega. A dramaticidade da trama atinge o ponto máximo quando a mulher corre atrás do trem. Com a locomotiva em movimento, filho e mãe mal conseguem tocar a ponta dos dedos.

Todo o esforço da viagem se resumiu ao simples toque de dedos e uma mera troca de olhares. Na última cena, o vagão desaparece numa curva enquanto o filho se recosta, aliviado, em um assento de madeira. Ele parece feliz, com um leve sorriso nos lábios. O filme deixa uma mensagem: quando amamos, qualquer encontro, mesmo fluido, rápido ou impermanente se torna precioso.

Na vida, contamos com duas dimensões: passado e futuro. O passado, que se alonga como sombra, e o futuro, que encolhe. Nunca possuímos o presente. O instante foge. O presente escapa. O momento se esfumaça. A vida se dilui velozmente. A única constância que existe é o devir, que transforma, sem parar, futuro em passado. Essa fluidez ninguém impede.

No hiato fugaz entre o porvir e o passado, alguns acontecimentos se perdem, outros se eternizam. Com o passar dos anos nossa memória vai se tornando seletiva. De tudo o que vivenciamos, apenas um punhado de eventos fica armazenado – alguns doloridos, outros felizes.

Sempre que conseguimos armazenar na lembrança um acontecimento, eternizamos aquele instante. Permanecem na gente tanto as recordações boas como as ruins. Carregamos em algum recôndito da alma, cicatrizes, traumas, olhares ferinos, frases destruidoras, gestos ameaçadores. Também mantemos, como um flash agradável, incentivos, abraços solidários, acolhimentos, sorrisos.
Renascer como fênix

Há três inimigos que podem surpreender nas madrugadas insones: fracasso, impotência e culpa. Quem lida mal com as próprias limitações sofre horrores. A percepção da fraqueza existencial, é faca de dois gumes, que tanto ajuda como destrói. Quem reluta contra sua condição frágil arquejará, invariavelmente, sob o peso de seus erros.

Exigências sociais também podem deixar qualquer um como peixe fora d’água, arfando. Não há fatiga mais debilitante do que a inaptidão. Vez por outra, nos consideramos calouros desafinados em show de talento. A iminência do gongo nos aterroriza. A mente recria os momentos em que fracassamos. Paralisamos, igual ao jogador que pisou na bola na pequena área e não consegue mais voltar a fazer gol.
Não poucas vezes retrocedemos, intimidados. Depois de algumas descomposturas, perdemos a ousadia de tentar novos caminhos. Quando falamos, gaguejamos. Não faltam pessoas que nos lembrem nossos tropeços. Depois que nos esmeramos tanto, fica um gosto amargo: estamos em falta com a divindade.

Religioso nunca se desvencilha de culpa. Na lógica da religião, mesmo depois de décadas, continua a sensação de que somos os principais pecadores. A mente martela: você frustrou os anseios de seu pai, constrangeu sua mãe e decepcionou Deus. Queremos rasgar a máscara, mas ela parece pregada na cara. Não sabemos quem é mais verdadeiro, o simulacro imposto pela igreja ou a pessoa que conversa conosco de dentro do espelho. 

Deixamos de ser a personagem que se exibia sob as luzes da ribalta, todavia, não achamos nosso verdadeiro eu.
Dura tarefa admitir a própria impotência. Entre heróis, precisamos ir no caminho inverso. Sem a capa dos ungidos, abrir mão da capacidade de decretar milagre, não ter por usurpação ser igual a Deus e não buscar encabrestar as pessoas ao nosso redor. Quem trilha a estrada do esvaziamento deve saber: seus argumentos não passarão de arrazoamentos; é impossível controlará o porvir; jamais alguém conhecerá as rotas de fuga do labirinto chamado vida; não há como antecipar os incidentes – ou acidentes – existenciais.

O passado se projeta como sombra e pode nos aterrorizar. Melancolia não passa de remorso não curado. Cientes das escolhas equivocadas, todos convivemos com a tortura de sentir que transgredimos alguma lei, maculamos o universo ou constrangemos expectativas divinas. Para nos livrar da angústia de nos perceber inadequados, agudizamos as faltas. Fazemo-nos os piores do que somos e, cabisbaixos, procuramos nos purgar por meio de uma penitência redentora, final e definitiva. Transformamo-nos em algozes. Implacáveis com nossas sombras, projetamos nos outros as maldades que nos atormentam.

Só depois que notamos a inutilidade dos castigos é que temos condição de fazer as pazes com a alma. (Quem estabeleceu a régua implacável que me condenou? Quem exige que eu controle as variáveis insubordináveis do universo? Qual o ganho se culpa me atolar em autocomiseração?)

Não precisamos desempenhar. Não somos demiurgos em algum palco cósmico. Felicidade não consiste em impor a vontade sobre as demais pessoas. Ninguém despista a angústia – ela é condição humana.
Resta-nos levantar a cabeça. Nosso valor não depende de alcançar os atributos omni dos deuses. Rechacemos as vozes que lembram o nosso fracasso. Procuremos desdenhar da tentação de afirmar: Tudo posso. Transformemos culpa em aliada. Não nos vejamos decadentes, caídos. Somos Fênix, destinados a renascer.