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quarta-feira, 22 de abril de 2015


Um cântico na agonia

O que você faria hoje, se soubesse que amanhã se encontraria preso a mais terrível e indescritível crise existencial? Se amanhã você se desse conta de que seu melhor e mais intimo amigo lhe houvesse faltado ao dever humano e fraternal de solidariedade? O que você faria se, de repente, aquela pessoa de quem você nem de longe desconfiaria, na qual você tanto investiu e que tanto usufruiu de sua cultura, seus afetos, inclinações e bens maiores otraísse?
O que você faria se a religião na qual você foi criado, em meio a qual foi
inspirado,dentro da qual foi instruído, subitamente, estabelecesse uma penalidade contra você?
Como você reagiria se, de hábito, se visse escarnecido, vilipendiado, com a honra enxovalhada, a dignidade exposta a uma situação de zombaria, motejo, galhofa e ironia? O que faria se fosse alvo de grave violência física, de um estupro, por exemplo, ou de uma surra absurda?
Qual seria a sua atitude se você tivesse certeza absoluta do que lhe aconteceria nos próximos dias?
Houve um dia, na vida de Jesus, quando, olhando adiante, ele só conseguia ver coisas absurdas e semelhantes a essas a que acabo de me referir. Seu dia seguinte seria o dia do Getsêmani; dia da depressão, da agonia; dia do encaramujar da alma; dia da vertiginosa descida à região mais abissal; dia do choro, gemido, solidão profunda.
O dia seguinte seria aquele no qual faltaria a solidariedade dos amigos. Ele gemeria, choraria, pediria, reclamaria; solicitaria apoio, companhia, mas os amigos estariam dormindo. Voltaria a eles e em vão questionaria: Não pudestes vigiar comigo? Não pudestes investir em mim sequer alguns minutos? Não conseguistes vencer o sono? Será que a minha dor é menos importante que o conforto e o sossego? Simão, tu dormes? Não pudeste vigiar comigo uma hora? (Marcos 14:37).
O dia seguinte também foi dia de traição, dia no qual Judas Iscariotes discípulo, apóstolo, amigo, amado o troca por dinheiro. Judas que fora investido de autoridade, aquele a quem se descortina sonhar com os que sonham na intervenção de Deus na História; alguém aquinhoado com poder divino para realizar curas, prodígios, expulsão de demônios; aquele
que vivenciara realidades concretas da chegada e da demonstração do Reino.
É justamente ele que, em função de um bom negócio, trai a amizade; é esse Judas que beija e apunhala. É ele que dá um susto não um susto no coração de quem não sabia o que ocorreria, mas um susto naquele que, mesmo ciente do que iria suceder, reserva-se, ainda assim, o direito de
enfrentar cada momento da vida como cada momento da vida, com seus temores, sonhos e ambigüidades.
O dia seguinte é o dia da negação, negação de um dos melhores amigos, amigo que diante de uma situação pública afirma jamais tê-lo conhecido, não ter com ele a menor relação, não guardar a lembrança de nenhum encontro; não haver história entre eles, hipótese alguma de cumplicidade. Amigo que declara: Não sei quem é esse homem; jamais o vi, nunca lhe ouvi o nome; tampouco andei com ele. Amigo que nega a fraternidade, o
compromisso, a paixão e o sonho comum.

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