Nas coordenadas 37 graus a sudoeste e 20 graus a nordeste, mar alto, navega um homem já adiantado em idade.
Desatento ao açoite do vento, ele medita. Está só. Vez por outra seus lábios se movimentam. A barba, grisalhada de três dias, mostra há quanto partiu de um porto seguro. Ele conversa com o nada. Mal se dá conta de que ninguém ouve o monólogo. Mas ele insiste, pois precisa falar a si mesmo.
Desatento ao açoite do vento, ele medita. Está só. Vez por outra seus lábios se movimentam. A barba, grisalhada de três dias, mostra há quanto partiu de um porto seguro. Ele conversa com o nada. Mal se dá conta de que ninguém ouve o monólogo. Mas ele insiste, pois precisa falar a si mesmo.
Na aspereza das ondas, o viajante sabe: o oceano em que se navega para o interior de si é mais vasto do que o azul infindável que se alonga por todos os lados.
O sol arde, inclemente. O único tripulante do veleiro parece não se importar com a falta de norte. A pino, com raios perpendiculares, o sol nega a existência de lados. Na imensidão das águas desaparecem bifurcações, esquinas, encruzilhadas. Tudo o que é vasto não permite atalho ou caminho variado. As alternativas desaparecem. Qualquer opção surge como dever de seguir em frente. Tudo é, ao mesmo tempo, ocidente e oriente, norte e sul.
O marujo deriva? Não. Ele segue o curso do universo, que também se expande sem rota. Quem conhece o trajeto das galáxias? Aonde vão as estrelas?
O timoneiro ignora qualquer imperativo que a consciência sussurra. Na ausência de novo curso, ele pretende gastar o tempo em meditação. Devanear lixa as arestas agudas de um passado que insiste em não desaparecer – quinas que machucam feito saudade. Ele sabe que as pontas afiadas da saudade ferem como navalha.
E entre arriar a âncora da culpa ou seguir adiante, permitindo que a quilha do imponderável corte as águas, o capitão solitário da nau prefere deixar que a quilha cumpra o dever de rasgar o mar.
Súbito, o vento sopra com força. Uma tormenta se intromete, veemente, nos pensamentos soltos do marinheiro. Os arredores da embarcação se colorem de nanquim. O dia passa de incandescente a crepuscular. A noite se impõe, ligeira, fora de hora.
Resta ao velejador sair de seu estado contemplativo. Não há plano de fuga. É preciso improvisar. Ele encara a tormenta como se não tivesse experiência alguma. A sobrevivência se torna, então, guardiã de sua resiliência. De joelhos, ele procura empinar a vela – é preciso ser rápido; a borrasca pode rasgá-la de alto a baixo.
Uma melancolia, também súbita, vaza de seus olhos, pele e mãos trêmulas. (Vale lembrar: a tristeza dos marinheiros engana). Com as mãos feridas, o homem se reveste de obstinação. O semblante se torna arisco. Ele se agiganta. Da vaga espumejante, empluma-se uma nova Fênix.
Já não existe qualquer balbuciar nos lábios. Ele parou de sussurrar; o silêncio interior se torna necessário para virar matéria prima da ressurreição. Ao lutar, é preciso desdenhar da fúria dos raios e dos trovões. Dos ombros altivos, o navegador olha para cima, em busca de encontrar alguma réstia de luz vinda de fora.
Uma dor impensada, daquelas que assaltam os valentes, arqueia a suas sobrancelhas. Quem ousa encarar o imponderável se fragiliza. De resoluto, agora tem que enfrentar o assédio da fadiga. O mar crespo não dá trégua. A possibilidade de retornar ao porto se distancia e esperança passa a significar o dever de continuar. O salgado das águas se confunde com suas lágrimas, que por sua vez se misturam com o seu suor e apesar do gosto amargo que ficou na boca, ouve-se um grito: Continuarei.
O que dizer desse marinheiro anônimo? Deixe-o em paz, ele navega rumo ao seu destino.
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